sexta-feira, 8 de abril de 2011

O ator em seu cenário.

Aos 80 anos, Walmor Chagas mantém o olhar aguçado sobre TV, teatro e cinema
Publicado em 17 de novembro de 2010

Ele diz que não gosta de fazer novela, mas tem quase 30 folhetins no currículo. Garante que o que ama, de verdade, é o cinema, mas ficou consagrado como ator de teatro. Vive num sítio faz quase 20 anos, mas quando sai na rua não há quem não o reconheça, em virtude da famosa cabeleira branca. Diz que a pessoa mais importante de sua vida até hoje é sua primeira e única esposa, Cacilda Becker. Em algum momento da conversa, porém, afirma com a mesma convicção que um dia se cansou de viver à sombra dela, separou-se e foi buscar sua individualidade.

Descrevendo outras preferências, informa que não aprecia os Estados Unidos nem tem prazer em interpretar em língua estrangeira, para logo em seguida incluir os norte-americanos Tenessee Williams, Eugene O’Neill e Edward Albee na lista dos grandes autores teatrais. Aos 80 anos, mais de 60 dedicados à arte de representar, Walmor Chagas é um homem de muitas opiniões. E contradições.Isolado na zona rural de Guaratinguetá, São Paulo, numa paisagem emoldurada pela Serra da Mantiqueira, com morros, colinas e recortes de cachoeiras, Walmor recebe poucas pessoas. A única filha, Maria Clara, passa por lá de 15 em 15 dias. Tem também o jardineiro e seu filho, que moram perto, além de dona Luíza, que cuida dele e da casa quase todos os dias da semana. E só. “Percebi que estava na hora de ir-me embora. O teatro brasileiro estava muito ruim”, lembra, referindo-se ao dia em que fechou o Teatro Ziembinski, no Rio de Janeiro, e construiu a casa em que vive.

Entre um Marlboro e outro – fuma em média 30 cigarros por dia –, o ator afirma que não sabe o que é sentir saudades de alguém. O que sente é falta, tenta explicar. “O ator é tão atualizado em si mesmo, tão egocêntrico, que só existe ele, não existem os outros. Então, na medida em que não existem os outros, não tenho saudades. Eu tenho um sentimento de falta. Sinto falta da Cacilda, de boas peças, de bons dramaturgos”, afirma ele.


Primeiro ato

Cacilda Becker morreu praticamente em seus braços. Durante o intervalo da peça Esperando Godot (texto de Samuel Beckett, com direção de Flávio Rangel, 1969), chegou a Walmor e disse: “Acho que estou tendo um derrame”. Ela estava, de fato, sofrendo um aneurisma cerebral, e ficou internada durante 38 dias, com Walmor a seu lado, até que resolveram desligar os aparelhos. “Fizemos 30 ou 40 representações e, na última delas, no intervalo, Cacilda se sentiu mal. Nunca fizemos aquele segundo ato. Foi muito triste. É a pessoa mais importante da minha vida até hoje. Ela e o [poeta] Fernando Pessoa são duas pessoas que eu consulto permanentemente”, diz o ator.
A primeira vez que viu Cacilda foi durante a peça Pega-Fogo (1950), de Jules Renard, sob a direção de Ziembinski (Zbigniew Marian Ziembiński, diretor polonês falecido em 1978). Foi quando chorou pela primeira vez ao assistir a uma apresentação, recorda-se Walmor, que ainda morava em Porto Alegre e estava de passagem por São Paulo. Poucos anos depois, em 1956, os dois eram colegas de Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e estavam contracenando em Gata em Teto de Zinco Quente quando, no intervalo, se beijaram.

O TBC era o maior teatro de São Paulo na época. E Cacilda, a maior atriz. Walmor, então, ficou em segundo plano. A princípio, feliz. “Eu gostava do segundo plano. Eu amava e acreditava nela, não em mim. Ela era maior, e as peças eram escolhidas para ela. Algumas eram escolhidas para mim, e nunca davam muito certo”, acredita ele, que também era empresário da esposa.“Farto do repertório do TBC”, que só montava peças estrangeiras, Walmor pediu dinheiro emprestado ao pai – ele “achou que o teatro era um bom negócio. Coitado, nós o enganamos!” – e montou, ao lado de Cacilda, o Teatro Cacilda Becker (TCB), em 1957. Levaram junto Ziembinski e Cleyde Yáconis, atriz e irmã de Cacilda, para fazerem peças principalmente nacionais. Mas só em 1960 o teatro ganhou sede própria, na Federação Paulista de Futebol. O TCB estreou, entre muitas, a peça O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, em 1958. Um dos pontos altos foi Pega-Fogo, de Jules Renard, remontagem bem-sucedida do período de TBC e mesma peça em que, anos antes, Walmor havia visto Cacilda pela primeira vez. No papel do garoto protagonista, Cacilda Becker teve sua consagração como atriz, e o espetáculo, apresentado em várias cidades do Brasil e também nos países onde o grupo fez turnê, tornou-se um clássico.

Ao todo, foram quase 30 peças encenadas pela companhia, em dez anos de existência, mas no meio disso tudo Walmor se cansou. Seria a primeira das separações da dupla. “Eu estava cansado de ser o empresário de Cacilda, desse segundo papel de ficar sustentando a estrela, de arranjar papel para ela. Pensava para onde iria a minha vida de ator. Será que seria sempre o empresário dela? Eu não queria isso. Me separei para tentar levar uma vida pessoal independente dela”, lembra Walmor, que se refugiou em Porto Alegre, mas voltou em 1964, ano em que nasceu a única filha dos dois, Maria Clara.


Papel principal

As pessoas falavam que ele se parecia com Rui Barbosa. Era magrinho e cabeçudo, segundo diziam. Por isso, Walmor se achava feio. Mas, quando subiu ao palco pela primeira vez, com Antígona, aos 18 anos, ficou feliz de poder se exibir. As luzes acenderam-se e sentiu-se bem pela primeira vez na vida. Desde então, não parou. Participou do Teatro do Estudante de Porto Alegre durante os quatro anos seguintes; tentou cursar filosofia, pois na cidade não havia escola de teatro, mas foi expulso logo no primeiro ano porque “matou Deus” e não aceitava assistir às aulas de teologia. Foi transferido para a universidade pública, cansou, fez as malas e, com o apoio da avó Clara, se mandou de navio rumo a São Paulo.

Os dois primeiros anos na cidade foram difíceis. Passou necessidades e fome até conseguir um contrato com o TBC, a “Globo da época”. Isso em 1954, com Assassinato a Domicílio, de Frederic Knott, contracenando com Cleyde Yáconis, sob a direção de Adolfo Celli, que marcou sua estreia como ator.

Embora tenha se consagrado como ator de teatro, Walmor Chagas sempre teve paixão por cinema. Mas, no começo de sua carreira, o que tinha, segundo ele, era só chanchada no Rio de Janeiro, e isso ele não queria. Teve uma estreia à sua altura, em 1965, como protagonista de São Paulo S/A, de Luís Sérgio Person, pelo qual foi publicamente elogiado por Luís Buñuel no Festival do Filme de Acapulco, México. Foi coadjuvante em vários longas, como Xica da Silva (1976), Asa Branca – Um Sonho Brasileiro (1981, com o qual ganhou o prêmio de melhor ator em Gramado) e Luz Del Fuego (1981). Mas papel de protagonista só em São Paulo S/A e, mais recentemente, em Valsa para Bruno Stein (2007), de Paulo Sacramento. “Diretor de cinema tem medo de ator de teatro, porque eles sabem dirigir o filme, mas não entendem a dinâmica mental do ator de teatro”, acredita ele, que acabou de filmar o longa Corda Bamba, de Ugo Giorgetti, em fase de pós-produção.Espectador de carteirinha do Canal Brasil, onde acompanha a produção cinematográfica nacional, o ator diz que nada tem lhe chamado a atenção atualmente, com exceção de Estômago (2007), filme de Marcos Jorge: “O filme é ótimo, conseguiu pôr no cinema o que Nelson Rodrigues colocava no teatro”.


A paz do artista

Na televisão, Walmor ainda assiste à TV Câmara e à TV Senado, diariamente: “Acho aquilo um teatro fantástico, são as melhores peças. Me divirto muito. Os políticos são atores perfeitos!”.
Walmor está assistindo a Passione, novela das 20h, da Rede Globo, mas já cansou de novo. O ator afirma não ter gostado de fazer nenhuma das dezenas de novelas de que participou. Fez só por obrigação e pelo dinheiro. “É um processo altamente cansativo e destrutivo para um ator. Transforma todos em canastrões. Não é interessante, não é arte”.Mas, entre todas as produções em que já trabalhou na televisão, cita a minissérie Os Maias (2001) como uma das melhores, apesar de tudo. “É verdade que Maria Adelaide Amaral meteu a mão e misturou Os Maias com A Relíquia e não podia ter feito isso. Os Maias é uma obra em si, mas ela achou que estava sendo criativa e que o público não ia gostar daquele drama do Eça de Queirós e colocou A Relíquia”, defende ele.

Desde que se desfez do Teatro Ziembinski, que comprou “com o dinheiro de cinco apartamentos”, em 1992, Walmor fez pouco teatro. Viveu Hamlet, de Shakspeare, em 1970, que “foi uma desgraça”, porque ele acredita que o ator só pode ser grande em sua própria língua, nunca em uma tradução. “Lavou a alma” depois disso em Porto Alegre, com o espetáculo Camões, Nosso Contemporâneo. Anos depois, em 1986, dirigiu e interpretou, ao lado de Ítalo Rossi, o bem-sucedido Encontro com Fernando Pessoa. Em 1999, participou de Um Equilíbrio Delicado e, mais recentemente, em 2005, atuou no monólogo Um Homem Indignado. “Minha vontade, com o Teatro Ziembinski, era de recuperar a cena artística nacional, mas não foi ninguém. Comecei com uma peça do Carlos Henrique Escobar, fiz uma do Millôr Fernandes, mas não foi grande coisa. Então desisti”, lembra ele, que logo depois se mudou para a casa em que mora até hoje. “O teatro brasileiro está velho, do ponto de vista da dramaturgia. Fui assistir a algumas peças na Praça Roosevelt, mas achei que eram mais sobre o escândalo do que sobre a arte”.
Hoje, Walmor tem uma vida tranquila. Curte a velhice, que acredita ser o portal da criança, por “poucas coisas divertirem a gente”, na simplicidade do interior. Em paz.
Fernanda Paola
Fotos: Marcelo Naddeo

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