segunda-feira, 14 de maio de 2012

Nelson Rodrigues em São José dos Campos ( Um presente carinhoso para nós)


NELSON RODRIGUES EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS
SILVIA ANSPACH
Não foi sonho, não. Encontrei com Nelson Rodrigues nesta noite.  Em São José dos Campos. Eu lhe perguntei:
_ O que você faz aqui hoje?
A que ele respondeu, entre desconfiado e vaidoso:

_ Soube que andam me ressuscitando por aí. Em grupos de teatro desta cidade. Aliás, pelo que dizem, vivem me dissecando. Dissecando a anatomia de meus textos. De minha alma criadora. Das dores de parto que precederam a cada nascimento de cada personagem. Do tipo sanguíneo que escorre de cada angústia, de cada pontada no peito, de cada estupro, de cada assassinato, de cada câncer no seio, de cada frase cancerígena do Otto Lara Rezende. De amantes que escorrem pelas paredes, de afogados em poças de líquido amniótico e de gritos primais. De Nonôs, Sônias, Alaídes, Genis e Glórias. De castos obscenos. De cavalos nus. De nudezes castigadas.

_ Isso te preocupa? Aborrece?
­_Minha querida, pré-ocupação supõe um pós. E não haverá nada após o pós-morte em que estou. Já cheguei aqui. Meu medo é retornar à vida. Afinal, como eu já dizia enquanto estava entre vocês, “o homem não é triste porque morre. É triste porque vive. A morte é o grande despertar”. Finalmente estou acordado e alerta. Não tenho que fugir à idiotice dos cretinos fundamentais, nem à unanimidade da burrice nem às ameaças à liberdade, esta liberdade que sempre soube ser mais importante que o pão. Conheço agora a eternidade com que minhas peças sonhavam. O amor eterno. O amor humano normalmente não é eterno. Assim sendo, não é amor. Diziam que eu era conservador por acreditar na perenidade do verdadeiro amor. Não era. Eu era um visionário. Encontrei o amor impossível neste futuro eterno em que vivo agora.

_Nelson, eu que entrei na sintonia do teu amor eterno através dos teus textos e peças, que encontrei uma afinidade tão grande com tuas ideias, com a visceralidade de teus personagens e falas... Eu sinto uma forte nostalgia e saudade. Saudade de nunca ter te conhecido. Nostalgia pela condenação que é a História: movimento inexorável do tempo, impossibilidade de voltar atrás. Se pudesse voltar, rebobinaria, marcaria hora e entrevista. Papel na mão, eu, e não você. Eu, sim. Eu seria a jornalista, a repórter. E te entrevistaria, registrando a forte e fatal poesia impressa nas tuas palavras e situações.
_ Não sei quem você é, tão anônima e tão temporal.  Mas não poderia nem quereria ter te encontrado. Se os humanos tivessem o poder e o direito de alterar a vida, ela não seria mais vida, imprevisível, rebelde, grávida de sangue, gritos, ritos, mitos, sóis nascendo no horizonte, mortas deixando mensagens de vida a maridos enxovalhados na desonra e em outros valores sem importância, a alma na sarjeta, a putrefação, a verdade bruta, nua, luminosa, doida e doída, de tão verdadeira. Prefiro te manter à distância.

_Pelo menos venha até S. José dos Campos ver tua peça... Eu te peço...
_ Não tenho esse direito. O que eu fui, agora é de vocês. Caí no domínio público. A liberdade é um pouco isso. Renúncia aos apegos e à vaidade. Não. Não digo isso com tristeza. Sei que agora sou as múltiplas leituras e recriações que vocês fazem do meu texto. Ganhei mil caras. Virei possibilidade de renascer ao infinito. Ouça bem. Esta “Toda Nudez...” do Cláudio Mendel com o Teatro da Cidade foi um laborioso parto, uma obra de pathos e paixão. Corajosa travessia. Eu antes era eu. Agora, sou eu, sou vocês, sou o infinito. Perdi em carne e sangue, e em ego. Ganhei em desprendimento e em eternidade. Sou livre. Sou a arte em sua pureza. Ganhei transparência.

_Por isso teu espetáculo ficou tão luminoso.
_Sim. Através dele, vocês podem ver a verdade mais verdadeira. A que o ser humano normalmente não tem coragem nem estrutura para ver. Talvez meu corpo sem peso, espiritual, em sua transparência, possa agora atuar como a lente que desnude o vigor mais pleno e intenso da atividade criadora. E ofereça um momento de deslumbramento e um vislumbre da chama eterna.
Só lhes peço para tomarem cuidado: Fogo e luz demais podem queimar ou cegar.


 * Este texto escrito por nossa querida Silvia Anspach, nos emocionou muito quando lido no final do debate de nossa reestréia, então estamos aqui compartilhando com todos vocês, agradecemos o carinho!!!!

3 comentários:

  1. Que encontro, esse! Eu, muito menor (ínfimo, na verdade), tive o privilégio de encontrar a Professora Silvia Anspach em um curso inesquecível, anos atrás. Um dos muitos grandes "mergulhos" que o encontro me proporcionou foi o no universo de Nelson Rodrigues. Recomendo o contato com tudo o que ela produziu - em especial, o livro "Entre Babel e o Eden - Criação, Mito e Cultura". Puro deleite. Como o que vocês seguramente experimentaram, ontem.

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  2. Não cheguei a ver o espetáculo, mas através do texto fui levada ao universo rodrigueano de forma fantástica! Boa sorte com o trabalho!

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  3. Silvia,

    que texto lindo, genial, uma entrevista com Nelson Rodrigues, que é ali compçletamente rodrigueano.

    Grande beijo e parabéns!

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