sexta-feira, 8 de maio de 2009

Simples e bem traçados desenhos de cena


“Maria Peregrina”

por ALEXANDRE MATE – Diretor,Historiador, Professor de História do Teatro-UNESP


“A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
Anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuarmos.
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam”.
Carlos DRUMMOND de Andrade. Nosso Tempo.





Talvez se pudesse começar esta ‘pretensiosa’ reflexão com algo próximo a: feliz o país que tem um artista-cidadão como Luís Alberto de Abreu... Se não assim, quem sabe: honrada a dramaturgia que tem em suas cadeiras um Luís Alberto de Abreu... De outro modo, ainda: dignificada a classe-confraria em cujas fileiras encontra-se Luís Alberto de Abreu... Mais que isso tudo: legitimada, justa, simples, brilhante e complexa a cultura popular reescrita/repensada/reconduzida por Luís Alberto de Abreu! Autor de um conjunto rigorosamente representativo da melhor dramaturgia brasileira (de todos os tempos) e sempre preocupado com as questões populares, éticas e épicas, Luís Alberto de Abreu: dramaturgo radical (no sentido de as essencialidades serem tomadas pela raiz), tem desde os anos setenta criado obras em que o homem-humanidade aparece buscando entender-se: “viver e contar. Certas histórias que não se perderam”.

Por esse mote, e dando continuidade às suas preocupações, Abreu (como é conhecido por boa parte das pessoas e amigos) - à convite da Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos - reconstitui dramaturgicamente a história-memória de, simplesmente, Maria Peregrina: mulher desmemoriada e desterrada dos quadros da vida social pautada pelas tradições burguesas e, também, das da dita ‘vida civilizada’. Espécie de personagem (tendo em vista a personalidade lacunar ter sido preenchida porinferências e crendices entre boas e más) assemelhada ao pai-homem-marido que em conto de Guimarães Rosa opta por uma ‘terceira margem do rio’: não se deu a conhecer... Viveu, apenas! Viveu, simplesmente, escolhendo (se se puder falar assim) o espaço da rua e a copa de árvores como abrigos de uma vida [des]protegida.
Desse modo, a impossibilidade de reconstituição e rememoração da história dessa mulher-personagem:[des]desconhecida dela mesma? [des]conhecida dos outros? pelas ‘mãosmaginação’ de Abreu é literal e emocinalmente narrada (e/ou dada a conhecer?!), a partir de um conjunto de três histórias que se articulam, negando e endossando dialeticamente os trabalhos de pesquisa e de coleta de informações e, também como é ‘natural’, de opiniões acerca da mulher- personagem.

O espetáculo (próximo ao ritualístico) dirigido por Claudio Mendel - bastante e positivamente amadurecido pela larga experiência e pelos anos de estrada - adota a estrutura desafiante proposta pelo texto, totalmente narrativo, mesclando suave e emocionantemente: a partir de simples e bem traçados desenhos de cena, as sutilezas alcançadas entre a representação e a interpretação, promovendo a tão aludida e difícil situação de olho no olho, face a face. Deste modo, o espetáculo parece aproximar-se dos versos do poema Divisa, de J. Moreno, segundo os quais:

“E quando estiveres perto,
eu arrancarei os meus olhos
para colocá-los no lugar dos teus.
E tu arrancarás os teus olhos
para clocá-los no lugar dos meus.
Então, eu te verei com os teus olhos
E tu me verás com os meus”.


Para além disso, o cenário e os adereços significativamente pueris e bastante eficientes pelo cuidado e carinho (que caracteriza desde sempre) o trabalho de Carlos Eduardo Colabone, aglutinam-se incorporando o épico e o simbólico em um universo regional e, penso, próximos aos imaginários de tantas e outras Maria Peregrinas.
Os atores, em seu conjunto, já conhecidos anteriormente e a partir de outros trabalhos (dentro e fora da Cia), não só conseguiram assumir os desafios propostos pelo texto-direção como, e é notório, amadureceram qualitativamente: com algumas interpretações bastante emocionantes (e a despeito, insisto, do caráter narrativo da obra). Desse modo, e sem destaques específicos (que estaria próximo da injustiça) existe coesão e a tão difícil unidade de conjunto.
A trilha musical, de Márcio de Oliveira, ajuda, fundamentalmente, a trazer para perto o contexto dramático: tanto do universo regional quanto do clima das personagens. Desse modo, entre funções épicas e dramáticas, o conjunto de intervenções musicais ‘alavanca’ a interpretação e ‘refreia’ as intervenções de representação, apresentadas na sua totalidade de modo narrativo.
Taí, um belo e digno espetáculo que permanece, calando fundo, para além de seu (e mesmo momento) de recepção. Depois de um espetáculo como esse, talvez o olhar sensível não consiga mais ‘passar batido’ por tanta história tecida no silêncio, de tantas Marias Peregrinas que ocupam ruas, calçadas, marquises e becos sem saída. Ou, de outro modo, como quis Gonzaguinha em uma de suas canções:

“Amanhã ou depois a gente se encontra no velho lugar(...)
e fala da vida que ficou por aí(...)
E quem souber algo acerca do seu paradeiro: beco das liberdades(...)
Histórias que a história qualquer dia contará.
De obscuras personagens: sem cruzes, sem nomes, sem corpos, sem datas...(...)
Uma pequena marginal:
Dessa imensa avenida Brasil”.

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