quinta-feira, 1 de abril de 2010

Um Dia Ouvi a Lua - Um espetáculo de superações: uma metaphorai poética


foto: Tito Oliveira
por Alexandre Mate

Ao completar 20 anos (o que já é difícil em qualquer metrópole brasileira), a Cia. de Teatro da Cidade, de São José dos Campos, comemora a data com trabalho: e que trabalho!
Juntando uma “brava gente brasileira”, a Cia. que passou por tanta dificuldade ao longo de tão significativa fatia de tempo, presenteia, por enquanto, a população joseense com mais um arrebatador texto de Luís Alberto de Abreu: Um dia ouvi a Lua.
O texto de um dos maiores dramaturgos do teatro brasileiro, Abreu, constrói-se por entre as paredes da memória, trazendo por intermédio da voz pretérita: imaginada, inventada, sonhada, vivida, partilhada a narrativa de três mulheres, habitantes do alhures-ali-pertinho São José dos Campos e cercanias. Mulheres plasmadas em um mundo de machos que matam para cumprir uma esvaziada tradição. Mulheres cujos discursos das avós reaparecem nas bocas das netas intentando a imaginação e tantas existências, nas quais a dialética popular abarca tanto o saber como o mistério na mesma e exata proporção. Universo caipira povoado por assombrações; universo no qual as-sombras-são, por tantos mistérios, constituintes de um bocado de tanto imaginar.
Mais uma vez, o grande mestre Luís Alberto de Abreu transita, assim como nossa potência imaginativa: que não é cartesiana nem linear, com um texto construído por diversas historicidades. Na dialética da memória, temperada pelo lembrar e pelo esquecer, crianças costuram cenicamente as narrativas, em cujo trabalho de criação de imagens, embaçando o que é hoje-ontem-agora... recebem - como se esperaria que acontecesse - um tratamento de direção com mão carregadas de afeto, por Eduardo Moreira, acompanhado, na condição de fidelíssimo escudeiro, por Claudio Mendel.
Os desenhos de cenas são lúdicos, correspondem grandemente aos modos como as crianças-crianças, os adultos-crianças ou os velhos-crianças - extasiados pelo viver - colocam-se em tantos palcos... Sem que se tenha uma percepção imediata, o espetáculo remete ao ancestral: cores explodem, folhas de palmeiras mostram e escondem, divertem e se refuncionalizam. Pronto, tudo conflui para a aprensão sensível e emocionada da obra. Por meio dela e da entrega sensível, remete-se àquelas fatias de vida, individuais e coletivas em que o viver, superando tantas dificuldades apontava o viver intenso e feliz como uma tarefa necessária. Nesse particular, o movimento de circularidade do texto, que traz uma “tempestade e mansidão de que é feita o querer”, apresenta a trajetória de três mulheres, mas a última delas, ao reencontrar-se consigo mesma, por meio de todas as mulheres de que é feita, concede-se o viver partilhado. A sensibilidade do diretor conseguiu criar um conjunto de imagens lúdicas: o esconde-esconde dos meninos; o jogo da amarelinha das meninas; o ir e vir dos seis atores e personagens, em movimentos perpendiculares, tendo o limite da boca de cena; da corda... Criam uma poesia sinestésica: o sensível se deixa ser levado para dentro da memória pessoal, que é coletiva e que está dentro de uma história que contem outra e mais outra e mais ainda outra histórica: sinestesia emocional e circulante.
O espetáculo resulta de um bem urdido conjunto de criadores: nele pode-se ouvir de modo emocionado, feito canto orado, em tantas e esplendidas vozes, afinadas por um grande mestre Beto Quadros. Canções ancestrais, conspiram e conseguem, sem qualquer esforço, atravessar as paredes de vento e contaminar o espírito, remetendo ancestralmente à infância. Sinestesia das palavras e canções em um período da vida em que a fé não tinha pouso no abstrato, na superioridade inalcançável, mas na alegria trazida pelas relações partilhadas.
Por conhecer o grupo e seus integrantes, por já ter assistido a quase todos em espetáculos anteriores, não tenho dúvida: trata-se do melhor trabalho de cada um deles. Há em cada ator e atriz “aquele brilhos nos olhos de quem está inteiro e intenso”. Andréia Barros, já vista em tantos espetáculos anteriores, continua generosa e abrigante... Penso que a desmemoriada Maria Peregrina, texto de Abreu montado anteriormente pela Cia., retoma a grandeza e potência de Andréia Barros, que partilha com o elenco o parto da cena. Os seis atores, a exceção de um ou outro momento - de cenas que ainda carecem de certa afinação - estão muito bem: como disse é o melhor trabalho de cada um daqueles que já havia visto em cena.
Em algumas cidades da Grécia os transportes coletivos são chamados de metaphorai (metáforas). Uma metáfora corresponde a uma transposição de sentidos, fala-se algo, mas pode se referir a outra coisa. Dessa forma, assim como se toma um ônibus e, sem que o sujeito saia do assento que ocupa, é possível transpor lugares, espaços, territórios diferentes... Um dia ouvi a Lua caracteriza-se em uma surpreendente metáfora cênica: sentei-me na F-16, do teatro do SESC de São José dos Campos mas, mesmo sem ter saído da cadeira, o espetáculo transportou-me para tantos de meus passados lugares.

Evoé? Evoando...

Alexandre Mate
01/04/2010 (sem qualquer alusão à mentira).

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