segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Corpo


TÍTULO: Preparação do atuador: limite, virtual, memória e vivência.
AUTOR: Renato Ferracini
INSTITUIÇÃO: LUME – UNICAMP
GT: Territórios e Fronteiras
PALAVRAS CHAVE: Atuação, Interpretação, Representação


Ler o conceito de pré-expressividade como um conceito de ação não expressiva, ou ainda,
ação antes da expressão é um erro. O corpo expressa. O corpo cotidiano expressa sempre. Mesmo o
suposto vazio e a inação são uma forma de específica de expressão. Mas podemos dizer que as
expressões cotidianas são varridas por um coletivo múltiplo de gestuais lugares-comuns. Clichês e
sensos comuns corpóreos regem as expressões cotidianas, sejam elas coletivas ou singulares. Isso
obviamente não é uma crítica. Esses gestuais clichês e sensos comuns nos permitem a comunicação
do dia-a-dia e, portanto, são necessários a uma época, cultura e a singularidades inseridas nesse
território temporal e espacial específico. Mauss e Le-Breton possuem estudos profundos nesse
sentido. Mas a arte corporal, o corpo-subjétil busca a transgressão desses limites expressivos
cotidianos. E para isso ele precisa de preparação.
Preparar um corpo-subjétil1 é buscar ir além dessa géstica cotidiana. Treinar e preparar o
corpo pré-expressivamente é o mesmo que realizar uma pós-expressão cotidiana, pós no sentido de
novas possibilidades, pós-possibilidades. Buscar potências de possibilidades, levar o corpo em uma
jornada de possíveis: isso é pré-expressividade e não há nada mais expressivo que a préexpressividade.
Para se lançar nesse território pré-pós-expressivo (portanto entre) o corpo necessita
de um território cujo tempo e espaço possam ser dobrados, reconfigurados e cuja potência de ação
possa ser alegre no sentido espinosano de aumento de possibilidade de afeto. É dessa necessidade
que vem a palavra treinamento. Mas cada ator, cada grupo, cada corpo-subjétil constrói o seu
próprio treinar e treinar esse corpo-subjétil não é tão somente um trabalho necessariamente
realizado em sala por um período determinado de tempo. O treinar é uma busca de estado e não
exercícios a serem executados em um espaço-tempo exato. Na verdade, no estado do treinar, pouco
importa a execução precisa e exata do exercício ou sua evolução enquanto complexidade. Importa,
sim, o uso de trabalhos e exercícios para se atingir um limite, uma borda, criar uma fissura em sua
géstica conhecida e cotidiana ou mesmo em seus clichês expressivos artísticos singulares no caso de
um ator com experiência..
1 CORPO-SUBJÉTIL: um corpo-em-arte não pode ser conceituado como uma ponta de um dualismo, mas
como um corpo integrado e vetorial em relação ao corpo com comportamento cotidiano. Chamei, então, esse
corpo integrado de corpo-subjétil. Esse conceito não é um ponto ou outro de uma dualidade mas uma
diagonal que atravessa essa dualidade abstrata e todos os pontos e linhas “entre”.
Esse treinar – quase uma ética - essa pré-pós-expressividade está alicerçada em dois
pilares básicos que são três multiplicidades complexas e que se comunicam em rizoma: a memória e
a vivência.
A memória é duração. Segundo Bérgson, ela – a memória - acumula o passado em um
presente que sempre passa. Mas o passado não é acumulado tão somente em formas de lembranças
concretas, mas é acumulado, principalmente, em forma de virtuais de memória que se aglomeram
independentemente de nossa vontade, criando uma espécie de memória ontológica. Estamos sempre
atualizando esses virtuais. Essa atualização pode ser meramente mecânica, ou seja, através do
controle de nossa vontade, quando dirigimos um carro, por exemplo, atualizamos mecanicamente os
virtuais de memória do coletivo de ações do guiar ou essas memórias são atualizadas independentes
de nossa vontade: um cheiro que nos remete a uma lembrança, um gosto de nos remete a um estado
de memória: Proust traduz magnificamente essa potência independente de atualização de memória
em sua passagem sobre o gosto do bolinho de Madeleine, lembrança da infância do herói, na cidade
de Combray, atualizada pelo gosto do bolinho com chá. Mas a ação de atualização não é nunca uma
ida do presente ao passado em uma espécie de re-vivência da lembrança, mas uma atualização é
sempre uma vinda do passado ao presente, sempre gerando uma recriação da lembrança no aqui
agora. É por isso que toda atualização é uma criação: a vinda do passado ao presente recria a
passado nesse mesmo presente.
Acredito que haja uma espécie bem específica de atualização de memória que é a
atualização de memória corpórea para um fim estético. Estamos falando, agora, da capacidade do
atuador em buscar uma atualização dessa memória corpórea, recriando sempre um fluxo poético
nesse movimento, ou seja, a capacidade de criar e sempre recriar esse fluxo através da atualização
de virtuais de forma consciente, mas não mecânica. Estou dizendo da capacidade do atuador em
atualizar a experiência vivida por Proust em sua Madeleine de forma consciente, com o corpo, pelo
corpo, através do corpo. Esse movimento, esse fluxo é possível devido à busca consciente da
atualização de vivências intensivas trabalhadas em estado de treinamento e vivência deve ser
entendida aqui como algo que:
[...] é trazida para fora da continuidade da vida, permanecendo
ao mesmo tempo referida ao todo da própria vida.[...] Na medida que a
vivência fica integrada ao todo da vida, este todo se torna também
presente nela (Gadamer, 2006, p. 116).
Isso significa que, segundo Gadamer, uma vivência teria a capacidade de, ao mesmo
tempo, realizar um certo desvio de fluxo da vida, mantendo nesse mesmo desvio o todo potente da
própria vida; e esse desvio vital - que contém o todo da vida - faz parte da própria vida. Uma
vivência, nesse caso, é uma experiência intensiva, vital, lançada de forma potente na duração virtual
de memória, mantendo o todo da potência vital dentro dela. Em outras palavras, vivenciamos
experiências que são acumuladas em virtuais potentes de memórias. Esses virtuais potentes de
memória contêm, em si, todo o potencial da própria vida: parte e todo como um só rizoma. Esses
virtuais de vivência intensiva, que podemos chamar de nódulos de potência virtuais ou matrizes
corpóreas (no caso do léxico do LUME), são potencialidades virtuais a serem atualizados
conscientemente no momento do estado cênico2. Treinar, portanto, significa criar a possibilidade de
vivenciar experiências intensivas, a ponto dessas experiências serem passíveis de recriação
posterior, recriando seu fluxo vital que ela, em si, já contém. Assim, a questão não é executar um
trabalho, mas vivenciá-lo, puxar esse trabalho em um limite intensivo. Claro que não estou falando
aqui de um elemento meramente mental no sentido de uma lembrança racional, mas essa vivência
fica impregnada de forma virtual no próprio corpo-memória, ou seja, não devemos entender
memória e vivência como experiências mentais ou meramente imagéticas, localizadas em um ponto
específico chamado cérebro, mas devemos entender essas vivências como vivências corpóreas,
vivências-subjéteis. Será que ainda necessitamos provar o corpo integrado? Memória é corpo, já
gritavam tantos pesquisadores teatrais. Continuemos a gritar, então...
Dessa forma ampliamos o conceito de “treinamento”: um “treinar” pode estar inserido na
ação de, por exemplo, sair às ruas e vivenciar experiências, observar os fluxos cotidianos, olhar as
relações sociais a ponto de gerar um afeto, uma experiência, uma vivência intensiva. Um ensaio
pode ser um estado de trabalho constante na busca de vivências e, é claro, o próprio estado cênico
se configura como uma fonte constante de vivências. O território do “treinar” é muito mais amplo
que um espaço-tempo destinado à realização de exercícios. O “treinar” se confira muito mais como
uma postura ética na relação com o corpo, com o espaço, com as relações sociais, com suas próprias
singularidades. Um atuador deve estar em constante treinamento ou, em outras palavras: um
performador deve estar na busca constante de fissurar seus limites de ação procurando uma potência
possível de expressão, seja em uma sala de trabalho, seja no ensaio de um espetáculo, seja dentro do
próprio espetáculo. No espetáculo se treina, assim como no cotidiano pode se encontrar estados
cênicos. O importante é encontrar potências de vivências que, em si, mantém sua força vital:
vivência como força motriz, matriz, que lançadas como virtuais potentes na memória dos atuadores
serão sua fonte inesgotável de organicidade e vida.
2 Chamo de ESTADO CÊNICO o momento específico em que o ator se encontra na ação de atuação
juntamente com o público e com todos os elementos que compõe a cena.
Bibliografia de Base
DELEUZE, GILLES e GUATTARI, FELIX. O que é Filosofia. Trad. Bento Prado Jr e Alberto
Alonso Muñoz. – Rio de Janeiro : Editora 34, 1992
------------------------------------------------------- Mil Platôs : Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4.
Trad. Suely Rolnik. – Rio de Janeiro : Editora 34,1997.
DELEUZE, GILLES e PARNET, CLAIRE. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro – São Paulo :
Editora Escuta, 1998.
GADAMER, HANS-GEROG. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Trad. Fla´vio Paulo Meurer – Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2005.
LÉVY, PIERRE. O Que é o Virtual? Trad. Paulo Neves. São Paulo : Editora 34, 1996
MATURANA, HUMBERTO. e VARELA, FRANCISCO. De Máquinas e Seres Vivos –
Autopoiese – A organização do Vivo. Trad. Juan Açuña Llorens. Porto Alegre : Artes Médicas,
1997.

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