sexta-feira, 29 de maio de 2009

Um espetáculo enxuto e orgânico

por Aimar Labaki - Dramaturgo e Jornalista

“Maria Peregrina” dá continuidade à brilhante trajetória de Luís Alberto de Abreu. Ao longo dos anos, num rítmo impressionante, ele vem escrevendo uma série de textos cada vez mais sofisticados em sua estrutura e cada vez mais populares em seu conteúdo. Quer seja na parceria permanente com a Cia Malazartes, quer seja em encontros específicos com outros grupos, Abreu aprofunda cada vez mais sua
linguagem e sua pesquisa dos conteúdos populares.

O casamento com a Cia Teatro da Cidade rendeu um espetáculo enxuto e orgânico. Um elenco muito afinado, todos no mesmo diapasão, dá vida a uma série de tipos que por serem tão locais, resultam universais. Resgatando parte da cultura oral da região, eles tratam de temas como a modernização e o desenraizamento cultural sem deixar nunca de contar as histórias que formam a grande História.

“Maria Peregrina” é exemplo de trajetórias distintas que se cruzam com ganhos para todos. Abreu escreveu mais um belo texto e verticalizou sua reflexão. A Cia Teatro da Cidade amadurece artísticamente ao mesmo tempo em que se volta para a realidade de sua própria comunidade.

Não percam!!!

domingo, 24 de maio de 2009

Maria Peregrina emociona.

por Carlos Karnas - Jornalista

Faz rir e chorar na beleza e intensidade do espaço de tempo do teatro, na simplicidade da passagem de cena de um mesmo ato. Os atores no palco afloram a sensibilidade da platéia. Comove a simplicidade e a verdade do texto. A intimidade do conto e do canto, cara a cara, ator e público, adornam “Maria Peregrina” com encantamento e magia que fazem vibrar o corpo, o coração bater mais forte, soltar o riso, verter lágrimas. É puro sentimento.

Uma fala regional, emotiva, tão singular a tantas outras falas regionais deste imenso Brasil. Entretanto “Maria Peregrina” é única e exclusiva por ser valeparaibana, do Vale do Paraiba. Isso dá orgulho!

A riqueza do tema, o texto e a linguagem do autor, a cantoria tão chegada da gente, o cenário e a singeleza do figurino, a ação dos atores e a competência do diretor, obrigam “Maria Peregrina” a ser maior do que é por ela mesma. Eis um teatro próximo da gente. Puro, esforçado, vivenciado, sério, intimista, cara a cara, para fazer rir, chorar, questionar, denunciar e emocionar qualquer público, em qualquer ato, espaço ou condição.

“Maria Peregrina”, vejo-te aberta ao mundo! Sucesso!

Bênção minha santa!

Fotos do público em SP no foyer do Teatro comemorando 9 anos de sucesso e história do Maria Peregrina





sábado, 23 de maio de 2009

Exposição "Recortes" em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet

A Fundação Nacional de Artes (Funarte) inaugurou no dia 16 de maio, no foyer do Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo, a exposição Recortes. Com concepção da Jornalista Carla Maciel e curadoria do artista plástico e fotógrafo Tito Oliveira, que por sua vez também é um dos autores das fotografias presente na exposição. A mostra consiste em uma junção de diversos registros concebidos ao longo dos nove anos de trajetória do espetáculo Maria Peregrina, realizado pela Cia Teatro da Cidade, de São José dos Campos. A peça tem autoria de Luís Alberto de Abreu (Prêmio Shell 2003), e direção de Claudio Mendel. A exposição ficará em cartaz até 28 de junho.

O espetáculo está há nove anos em cartaz e possui uma trajetória de sucesso marcada por mais de 40 prêmios e 200 apresentações. Maria Peregrina surgiu a partir de pesquisas realizadas pela Cia. Teatro da Cidade sobre a cultura popular do Vale do Paraíba. A montagem reúne técnicas do teatro oriental e ocidental, mesclando a estrutura do teatro Nô com a narrativa encontrada em Brecht e no teatro épico. Os artistas narram e vivenciam as histórias ora no passado (atores narradores), ora no presente (personagens - narradores). A trilha sonora é composta por músicas das festas populares da região. O cenário e o figurino foram inspirados nas obras das famosas figureiras do Vale do Paraíba.

Recortes faz parte da programação do Teatro de Arena, que inclui ainda as apresentações do espetáculo Maria Peregrina, sextas e sábados, às 21h e domingos, às 19h, até o fim da exposição.

A programação marca a reabertura do Teatro de Arena, que se deu no dia 27 de novembro de 2008.

Serviço:

Exposição Recortes

Teatro de Arena Eugênio Kusnet

Rua Teaodoro Baima, 94, Vila Buarque, São Paulo

Entrada Franca

Até 28/06

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Elenco coeso e integrado à proposta da encenação

por Clóvis Garcia – Professor na ECA/USP e crítico de Teatro


A partir de um excelente texto escrito por Luís Alberto de Abreu, especialmente para a Cia Teatro da Cidade, de São José dos Campos, que se utiliza da narrativa para contar a história de uma personagem que viveu na cidade por mais de 20 anos, o espetáculo é todo dialogado com a platéia, com a linguagem caipira do Vale do Paraíba, com citações da Folia de Reis, Divino e festas populares da região.

Com um elenco coeso e integrado à proposta da encenação, com a direção firme e criativa de Claudio Mendel, “Maria Peregrina” é um ótimo espetáculo, complementado pela cenografia e figurinos de Carlos Colabone e a ótima performance musical, sob direção musical competente de Márcio de Oliveira.

Um espetáculo comunicativo, sensível e emotivo, apesar de todo recurso narrativo do texto, que a direção soube traduzir com maestria para o palco, A coerência entre texto, música, interpretação, cenário e figurinos, nos permite um espetáculo belo, que, com a adesão do público, resulta em um trabalho de nível artístico da melhor qualidade.



Maio de 2002




Revivendo com pulsação o Vale do Paraíba

Por Haidee Bittencourt – Professora - ECA/USP- diretora teatral

Maria Peregrina é da “forma” de Luís Alberto de Abreu. O autor foi buscar em fatos da tradição local, pesquisado pelos atores da Cia Teatro da Cidade, a inspiração para essa Maria. As personagens foram inspiradas nas figuras populares da região, com suas características humanas, suas músicas e suas festas tradicionais do Vale do Paraíba. Tudo acontece ao redor de Maria e nos deixa curiosos para desvendar quem é essa personagem. É todas as mulheres essa milagreira Peregrina!? Texto difícil de ser colocado em cena. Mas a Cia Teatro da Cidade venceu o desafio, revivendo com pulsação o Vale, sua gente, neste espetáculo.

A direção de Claudio Mendel conseguiu superar a barreira aparente do relato, e nos torna, desse outro lado (platéia), confidentes, cúmplices, do povo do Vale. Seu trabalho com os atores permite muita liberdade de criação ao elenco, reforçando o que o texto de Abreu solicita: simples, discreto, íntimo.

O elenco disciplinado na proposta da direção, coroa o espetáculo com interpretações equilibradas, desenhados, como sugere o texto. Elogiáveis as atuações de Andréa Barros (Mulher, Tereza, Louca e Mãe); Vander Palma, Márcio Douglas, Conceição de Castro e Karina Muller. Essas duas atrizes desempenhando papéis masculinos com veracidade, sem sentirmos a necessidade de serem interpretados por atores.

O cenário, figurinos e o tratamento musical, fazem desse trabalho, um espetáculo um trabalho digno e competente no cenário teatral brasileiro.


Maio de 2002


FOTOS









Espetáculo Maria Peregrina
de Luís Alberto de Abreu
Direção: Claudio Mendel

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Simples e bem traçados desenhos de cena


“Maria Peregrina”

por ALEXANDRE MATE – Diretor,Historiador, Professor de História do Teatro-UNESP


“A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
Anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuarmos.
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam”.
Carlos DRUMMOND de Andrade. Nosso Tempo.





Talvez se pudesse começar esta ‘pretensiosa’ reflexão com algo próximo a: feliz o país que tem um artista-cidadão como Luís Alberto de Abreu... Se não assim, quem sabe: honrada a dramaturgia que tem em suas cadeiras um Luís Alberto de Abreu... De outro modo, ainda: dignificada a classe-confraria em cujas fileiras encontra-se Luís Alberto de Abreu... Mais que isso tudo: legitimada, justa, simples, brilhante e complexa a cultura popular reescrita/repensada/reconduzida por Luís Alberto de Abreu! Autor de um conjunto rigorosamente representativo da melhor dramaturgia brasileira (de todos os tempos) e sempre preocupado com as questões populares, éticas e épicas, Luís Alberto de Abreu: dramaturgo radical (no sentido de as essencialidades serem tomadas pela raiz), tem desde os anos setenta criado obras em que o homem-humanidade aparece buscando entender-se: “viver e contar. Certas histórias que não se perderam”.

Por esse mote, e dando continuidade às suas preocupações, Abreu (como é conhecido por boa parte das pessoas e amigos) - à convite da Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos - reconstitui dramaturgicamente a história-memória de, simplesmente, Maria Peregrina: mulher desmemoriada e desterrada dos quadros da vida social pautada pelas tradições burguesas e, também, das da dita ‘vida civilizada’. Espécie de personagem (tendo em vista a personalidade lacunar ter sido preenchida porinferências e crendices entre boas e más) assemelhada ao pai-homem-marido que em conto de Guimarães Rosa opta por uma ‘terceira margem do rio’: não se deu a conhecer... Viveu, apenas! Viveu, simplesmente, escolhendo (se se puder falar assim) o espaço da rua e a copa de árvores como abrigos de uma vida [des]protegida.
Desse modo, a impossibilidade de reconstituição e rememoração da história dessa mulher-personagem:[des]desconhecida dela mesma? [des]conhecida dos outros? pelas ‘mãosmaginação’ de Abreu é literal e emocinalmente narrada (e/ou dada a conhecer?!), a partir de um conjunto de três histórias que se articulam, negando e endossando dialeticamente os trabalhos de pesquisa e de coleta de informações e, também como é ‘natural’, de opiniões acerca da mulher- personagem.

O espetáculo (próximo ao ritualístico) dirigido por Claudio Mendel - bastante e positivamente amadurecido pela larga experiência e pelos anos de estrada - adota a estrutura desafiante proposta pelo texto, totalmente narrativo, mesclando suave e emocionantemente: a partir de simples e bem traçados desenhos de cena, as sutilezas alcançadas entre a representação e a interpretação, promovendo a tão aludida e difícil situação de olho no olho, face a face. Deste modo, o espetáculo parece aproximar-se dos versos do poema Divisa, de J. Moreno, segundo os quais:

“E quando estiveres perto,
eu arrancarei os meus olhos
para colocá-los no lugar dos teus.
E tu arrancarás os teus olhos
para clocá-los no lugar dos meus.
Então, eu te verei com os teus olhos
E tu me verás com os meus”.


Para além disso, o cenário e os adereços significativamente pueris e bastante eficientes pelo cuidado e carinho (que caracteriza desde sempre) o trabalho de Carlos Eduardo Colabone, aglutinam-se incorporando o épico e o simbólico em um universo regional e, penso, próximos aos imaginários de tantas e outras Maria Peregrinas.
Os atores, em seu conjunto, já conhecidos anteriormente e a partir de outros trabalhos (dentro e fora da Cia), não só conseguiram assumir os desafios propostos pelo texto-direção como, e é notório, amadureceram qualitativamente: com algumas interpretações bastante emocionantes (e a despeito, insisto, do caráter narrativo da obra). Desse modo, e sem destaques específicos (que estaria próximo da injustiça) existe coesão e a tão difícil unidade de conjunto.
A trilha musical, de Márcio de Oliveira, ajuda, fundamentalmente, a trazer para perto o contexto dramático: tanto do universo regional quanto do clima das personagens. Desse modo, entre funções épicas e dramáticas, o conjunto de intervenções musicais ‘alavanca’ a interpretação e ‘refreia’ as intervenções de representação, apresentadas na sua totalidade de modo narrativo.
Taí, um belo e digno espetáculo que permanece, calando fundo, para além de seu (e mesmo momento) de recepção. Depois de um espetáculo como esse, talvez o olhar sensível não consiga mais ‘passar batido’ por tanta história tecida no silêncio, de tantas Marias Peregrinas que ocupam ruas, calçadas, marquises e becos sem saída. Ou, de outro modo, como quis Gonzaguinha em uma de suas canções:

“Amanhã ou depois a gente se encontra no velho lugar(...)
e fala da vida que ficou por aí(...)
E quem souber algo acerca do seu paradeiro: beco das liberdades(...)
Histórias que a história qualquer dia contará.
De obscuras personagens: sem cruzes, sem nomes, sem corpos, sem datas...(...)
Uma pequena marginal:
Dessa imensa avenida Brasil”.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Espetáculo sublinha as dinâmicas épicas que são os traços mais fortes da dramaturgia


por Rogério Toscano - dramaturgo




“Maria Peregrina” é o espetáculo que nasceu da pesquisa que o dramaturgo Luís Alberto de Abreu desenvolveu com a Cia. Teatro da Cidade, de São José dos Campos, sobre os processos narrativos característicos do teatro nô japonês e sobre a busca por uma identidade cultural própria, caracterizadora da prática teatral.

Conceitos abstratos como os de “força” e “leveza”, assim como imagens simbólicas colhidas da natureza, como a do “desabrochar da flor” - dentre outras - constituem o imaginário de formalização do nô e alavancam o processo de construção das estruturas contemporâneas de dramaturgia.

Duas matrizes que poderiam se mostrar distantes (uma codificação tradicional de uma cultura muito diferente e o resgate da memória que reinventa uma identidade local) conjugam-se para gerar as narrativas possíveis ligadas à história de Maria do Saco, personalidade desmemoriada, sem nenhum passado, que viveu no Vale do Paraíba até 1964 (quando morreu) e foi estigmatizada como santa pelas
crenças populares.

A inspiração oriental, então, não dissolve o interesse objetivo que a dramaturgia tem pela pesquisa de um território próprio e concreto, onde seja possível fincar raízes. Por caminhos paralelos, a memória cultural de um passado milenar se encarrega de iluminar os rastros e vestígios de uma identidade perdida - característica do homem deste tempo, pelo que se supõe na obra, sob a metáfora da Nega do Saco ou Mulher Desmemoriada.

Como criador, pesquisador e pedagogo, Abreu tem verticalizado, com seu Núcleo de Dramaturgia na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT), estudos que fundamentam a composição de teias de planos narrativos - textos que são abertos à intervenção da cena. Com evidente interesse pela escritura espetacular, que há muito tempo não se prende exclusivamente aos recursos da palavra, sua experiência de um trabalho participativo com a dramaturgia oferece recursos cênicos que desejam ser provocadores da encenação.

Em “Maria Peregrina”, três histórias possíveis do passado (“Tereza e Aventino”, “Tiodor” e “Às Margens do Paraíba” - esta última inspirada pelo drama nô “Sumidagawa” ou “Às Margens do Rio Sumida”) enleiam as tentativas de revelação do passado obscuro de Maria do Saco. Mas é somente o seu saco, meio vazio, que arrebanha e guarda as reminiscências da sua existência.


Como toda a cultura interiorana do Brasil, desfigurada pelo impacto da industrialização e da chegada massiva dos meios de comunicação das últimas décadas, a personagem criada por Abreu perdeu-se do passado. A escolha pela abordagem da peregrinação rumo à identidade (esfacelada em fragmentos de possibilidades) sinaliza em direção à resistência, à não aceitação dos processos criativos mais comuns da produção comercial.

Não por acaso, Abreu optou por afastar-se deste eixo de produção e estreitou relações com grupos de sólida constituição pelo Brasil afora, como o Galpão de Belo Horizonte, a Cia. Teatro da Cidade, de São José dos Campos, a paulistana Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes - além de seu decano grupo de pesquisa de dramaturgia, agora sitiado no ABC.

O espetáculo, dirigido por Cláudio Mendel, sublinha as dinâmicas épicas que são os traços mais fortes da dramaturgia e faz ressaltar sua fala rústica. Festas populares e cantos de raiz pontuam a trajetória descontínua, conduzida por atores-contadores de causos. Montado à distância do eixo Rio-São Paulo, é um espetáculo que não prima pelos custos da produção, mas pela revelação de modos alternativos de criar teatro, como é a proposta artística de Luís Alberto de Abreu.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Forma ideal nasce de um conflito entre personagens

CRÉDITO: PAULO ARIAS







KIL ABREU – Crítico Teatral da Folha de São Paulo e TV Cultura

Certa tradição do teatro ocidental, amplamente assimilada pelas platéias e por todos os que têm interesse na arte do teatro, nos diz que a sua forma ideal nasce de um conflito entre personagens que, através do diálogo, rumam para o malogro ou a felicidade. Ainda que boa parte do teatro moderno e contemporâneo desautorize essa visão, ela permanece como ideologia, como se determinasse quase que uma natureza ideal do fazer teatral. As experiências contrárias a essa regra seriam desvios compreensíveis, mas sempre desvios.
Pois vamos encontrar, através da Cia Teatro da Cidade, de São José dos Campos, o exemplo excelente de uma cena que, rebelde à norma, nos mostra a potência inquestionável do teatro narrativo, que se aqui não substitui totalmente a ordem dialógica, amplia o seu alcance, visitando áreas e construindo imagens que não seriam possíveis na simples representação de conflitos interpessoais. Por outro lado, coloca tarefas novas a serem resolvidas no palco.
Não é, evidentemente, a eleição deste ou daquele suporte o que garante a eficácia da cena teatral. No caso de “Maria Peregrina”, a empatia gerada pela montagem nasce da confluência de vários fatores, tornados necessários uns aos outros.
Por exemplo, o texto de Luís Alberto de Abreu não se conforma em apenas abordar um tipo de tema que normalmente já tem alguma chance de identificação com a platéia. Procura – e encontra – uma forma adequada para fazê-lo, inspirada tanto na concisão e poeticidade do teatro oriental quanto no imaginário popular brasileiro, através da sua tradição oral.
A fábula ganha a cena sem sobressaltos, à maneira dos contadores de “causos”. Amparada no cancioneiro, é costurada com o lirismo igualmente tranquilo dos fragmentos, que reconstituem a persona Maria do Saco ao tempo em que descortinam, sob o pretexto de visitar os vãos da memória, todo o rico imaginário do qual fomos desenraizados, habitantes do Vale ou não.
A estratégia da narrativa é eficiente porque responde a uma exigência do universo que o grupo procura representar. Se a dinâmica dialógica é o modo privilegiado de exploração das relações interpessoais e da subjetividade, o teatro narrativo comporta sem problemas as discussões coletivas, de fundo épico, e permite o salto no tempo, a flexibilidade na cronologia dos fatos, a visita ao passado e – mais importante – sem o comprometimento de um ponto de vista no presente. Todos esse são recursos usados com grande felicidade no espetáculo.
Por outro lado, se em geral esse conceito é resolvido com a organicidade que envolve quase todos os aspectos da montagem, em alguns pontos ainda há, ao que parece, como avançar.
É muito delicado, por exemplo, o trabalho dos bons atores da Cia, sobre a mudança no registro de interpretação. Em que momentos narrar no personagem ou fora dele? Quando para a platéia e quando centrados no universo da ficção? E ainda, em outro rumo: que tipo de intensificação emocional pedem os personagens, nessa proposta cujo conceito é tão claro? Embora o texto excrito às
vezes aponte a lógica dessas opções, em muitas passagens é preciso defini-las melhor (há, por exemplo, clara discordância entre a chave de interpretação dos dois atores na cena Tereza/Aventino – ele quase melodramárico, ela narrando a própria morte, sem nenhum esforço de psicologização). Ainda quanto às atuações, vale notar a necessidade de um cuidado maior na expressão palavra, apresentada aqui quase como armadilha: é pura poesia, dita na mais prosaica das falas.
A cenografia, em outro campo, é bonita em si, mas não pactua com certa objetividade que o espetáculo tem. Acertado que esse pano de fundo precisa de certa neutralidade, para dar conta de todas as variações temporais e de espaço, ainda assim ficamos mais atraídos pelo efeito plástico que por sentidos possíveis que dialoguem com o universo da peça.
Todas essas ressalvas são certamente marginais diante da eficácia de comunicação que “Maria Peregrina” tem. Mas, na “sintonia fina” podem significar alguma diferença, dada a qualidade do trabalho da Cia. De São José dos Campos e a importância dos temas e da pesquisa formal levados à cena.

(SJCampos – 08/09/2002)




sábado, 2 de maio de 2009

“Maria Peregrina” é uma viagem ao coração da narrativa

JOSÉ ANTONIO SOUZA – Ator, Diretor e Dramaturgo

“Maria Peregrina” é uma viagem ao coração da narrativa, com poesia e sutileza. Vitória sobre o mais fácil e sobre o usual. Com muita maestria e com a magnífica contribuição do elenco, o diretor Claudio Mendel fez um desvio proveitoso no caminho comum da expressão de cena e encontrou um atalho que registra uma tonalidade nova ao teatro. Trabalho de equilíbrio e domínio de palco, valorizando os riscos que o autor propõe no texto de Luís Alberto de Abreu, que nessa sua obra, estabelece como foco a narrativa, levada às últimas conseqüências.
O elenco, afinado com a proposta da direção, e equipado para realiza-la com mérito, nos deixa visível o brilho em todos os atores, que exercem uma espécie de disciplina cênica, extraindo desse exercício a unidade que os iguala nessa difícil opção de expressividade. O destaque é geral: de cada um e de todos.
O cenário e figurinos coesos com a harmonia delicada do espetáculo, quase todo em tom pastel, uma cor de casca de pão predominando nos trajes. Há nessa proposta, qualquer coisa de cálida nesse tom que completa e acrescenta discretamente à discrição criativa de toda a montagem.
Claudio Mendel, responsável pela direção do espetáculo, empresta com êxito o desafio de transformar o “causo” em espetáculo de Teatro, com plena compreensão do caráter morno da ação: faz disso uma costura cênica sem lances pontiagudos, de contornos suaves mas vivos, manipulando uma energia diferente para realizar a mise-em-scène. Dirige seus atores no tom e na expressão adequadas para o texto; obtém deles uma poesia sem estardalhaço, envolvente pela comunhão do assunto e da relação entre eles. Um trabalho maduro, corajoso, de tranqüila criatividade, num sentido oposto ao que é usual no campo dramático. Não há gritos, mas há tensão; não há recursos espetaculares, mas há espetáculo, na acepção encantadora da palavra.

Maio de 2002

Cia Teatro da Cidade e Minc

http://www.dc.mre.gov.br/festivais-e-concursos/santa-cruz-e-la-paz-festivais-de-teatro