quinta-feira, 7 de maio de 2009

Espetáculo sublinha as dinâmicas épicas que são os traços mais fortes da dramaturgia


por Rogério Toscano - dramaturgo




“Maria Peregrina” é o espetáculo que nasceu da pesquisa que o dramaturgo Luís Alberto de Abreu desenvolveu com a Cia. Teatro da Cidade, de São José dos Campos, sobre os processos narrativos característicos do teatro nô japonês e sobre a busca por uma identidade cultural própria, caracterizadora da prática teatral.

Conceitos abstratos como os de “força” e “leveza”, assim como imagens simbólicas colhidas da natureza, como a do “desabrochar da flor” - dentre outras - constituem o imaginário de formalização do nô e alavancam o processo de construção das estruturas contemporâneas de dramaturgia.

Duas matrizes que poderiam se mostrar distantes (uma codificação tradicional de uma cultura muito diferente e o resgate da memória que reinventa uma identidade local) conjugam-se para gerar as narrativas possíveis ligadas à história de Maria do Saco, personalidade desmemoriada, sem nenhum passado, que viveu no Vale do Paraíba até 1964 (quando morreu) e foi estigmatizada como santa pelas
crenças populares.

A inspiração oriental, então, não dissolve o interesse objetivo que a dramaturgia tem pela pesquisa de um território próprio e concreto, onde seja possível fincar raízes. Por caminhos paralelos, a memória cultural de um passado milenar se encarrega de iluminar os rastros e vestígios de uma identidade perdida - característica do homem deste tempo, pelo que se supõe na obra, sob a metáfora da Nega do Saco ou Mulher Desmemoriada.

Como criador, pesquisador e pedagogo, Abreu tem verticalizado, com seu Núcleo de Dramaturgia na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT), estudos que fundamentam a composição de teias de planos narrativos - textos que são abertos à intervenção da cena. Com evidente interesse pela escritura espetacular, que há muito tempo não se prende exclusivamente aos recursos da palavra, sua experiência de um trabalho participativo com a dramaturgia oferece recursos cênicos que desejam ser provocadores da encenação.

Em “Maria Peregrina”, três histórias possíveis do passado (“Tereza e Aventino”, “Tiodor” e “Às Margens do Paraíba” - esta última inspirada pelo drama nô “Sumidagawa” ou “Às Margens do Rio Sumida”) enleiam as tentativas de revelação do passado obscuro de Maria do Saco. Mas é somente o seu saco, meio vazio, que arrebanha e guarda as reminiscências da sua existência.


Como toda a cultura interiorana do Brasil, desfigurada pelo impacto da industrialização e da chegada massiva dos meios de comunicação das últimas décadas, a personagem criada por Abreu perdeu-se do passado. A escolha pela abordagem da peregrinação rumo à identidade (esfacelada em fragmentos de possibilidades) sinaliza em direção à resistência, à não aceitação dos processos criativos mais comuns da produção comercial.

Não por acaso, Abreu optou por afastar-se deste eixo de produção e estreitou relações com grupos de sólida constituição pelo Brasil afora, como o Galpão de Belo Horizonte, a Cia. Teatro da Cidade, de São José dos Campos, a paulistana Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes - além de seu decano grupo de pesquisa de dramaturgia, agora sitiado no ABC.

O espetáculo, dirigido por Cláudio Mendel, sublinha as dinâmicas épicas que são os traços mais fortes da dramaturgia e faz ressaltar sua fala rústica. Festas populares e cantos de raiz pontuam a trajetória descontínua, conduzida por atores-contadores de causos. Montado à distância do eixo Rio-São Paulo, é um espetáculo que não prima pelos custos da produção, mas pela revelação de modos alternativos de criar teatro, como é a proposta artística de Luís Alberto de Abreu.

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