CRÉDITO: PAULO ARIAS
KIL ABREU – Crítico Teatral da Folha de São Paulo e TV Cultura
Certa tradição do teatro ocidental, amplamente assimilada pelas platéias e por todos os que têm interesse na arte do teatro, nos diz que a sua forma ideal nasce de um conflito entre personagens que, através do diálogo, rumam para o malogro ou a felicidade. Ainda que boa parte do teatro moderno e contemporâneo desautorize essa visão, ela permanece como ideologia, como se determinasse quase que uma natureza ideal do fazer teatral. As experiências contrárias a essa regra seriam desvios compreensíveis, mas sempre desvios.
Pois vamos encontrar, através da Cia Teatro da Cidade, de São José dos Campos, o exemplo excelente de uma cena que, rebelde à norma, nos mostra a potência inquestionável do teatro narrativo, que se aqui não substitui totalmente a ordem dialógica, amplia o seu alcance, visitando áreas e construindo imagens que não seriam possíveis na simples representação de conflitos interpessoais. Por outro lado, coloca tarefas novas a serem resolvidas no palco.
Não é, evidentemente, a eleição deste ou daquele suporte o que garante a eficácia da cena teatral. No caso de “Maria Peregrina”, a empatia gerada pela montagem nasce da confluência de vários fatores, tornados necessários uns aos outros.
Por exemplo, o texto de Luís Alberto de Abreu não se conforma em apenas abordar um tipo de tema que normalmente já tem alguma chance de identificação com a platéia. Procura – e encontra – uma forma adequada para fazê-lo, inspirada tanto na concisão e poeticidade do teatro oriental quanto no imaginário popular brasileiro, através da sua tradição oral.
A fábula ganha a cena sem sobressaltos, à maneira dos contadores de “causos”. Amparada no cancioneiro, é costurada com o lirismo igualmente tranquilo dos fragmentos, que reconstituem a persona Maria do Saco ao tempo em que descortinam, sob o pretexto de visitar os vãos da memória, todo o rico imaginário do qual fomos desenraizados, habitantes do Vale ou não.
A estratégia da narrativa é eficiente porque responde a uma exigência do universo que o grupo procura representar. Se a dinâmica dialógica é o modo privilegiado de exploração das relações interpessoais e da subjetividade, o teatro narrativo comporta sem problemas as discussões coletivas, de fundo épico, e permite o salto no tempo, a flexibilidade na cronologia dos fatos, a visita ao passado e – mais importante – sem o comprometimento de um ponto de vista no presente. Todos esse são recursos usados com grande felicidade no espetáculo.
Por outro lado, se em geral esse conceito é resolvido com a organicidade que envolve quase todos os aspectos da montagem, em alguns pontos ainda há, ao que parece, como avançar.
É muito delicado, por exemplo, o trabalho dos bons atores da Cia, sobre a mudança no registro de interpretação. Em que momentos narrar no personagem ou fora dele? Quando para a platéia e quando centrados no universo da ficção? E ainda, em outro rumo: que tipo de intensificação emocional pedem os personagens, nessa proposta cujo conceito é tão claro? Embora o texto excrito às
vezes aponte a lógica dessas opções, em muitas passagens é preciso defini-las melhor (há, por exemplo, clara discordância entre a chave de interpretação dos dois atores na cena Tereza/Aventino – ele quase melodramárico, ela narrando a própria morte, sem nenhum esforço de psicologização). Ainda quanto às atuações, vale notar a necessidade de um cuidado maior na expressão palavra, apresentada aqui quase como armadilha: é pura poesia, dita na mais prosaica das falas.
A cenografia, em outro campo, é bonita em si, mas não pactua com certa objetividade que o espetáculo tem. Acertado que esse pano de fundo precisa de certa neutralidade, para dar conta de todas as variações temporais e de espaço, ainda assim ficamos mais atraídos pelo efeito plástico que por sentidos possíveis que dialoguem com o universo da peça.
Todas essas ressalvas são certamente marginais diante da eficácia de comunicação que “Maria Peregrina” tem. Mas, na “sintonia fina” podem significar alguma diferença, dada a qualidade do trabalho da Cia. De São José dos Campos e a importância dos temas e da pesquisa formal levados à cena.
(SJCampos – 08/09/2002)
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